Depois de um longo tempo sem postar, aqui está um conto!
Acabou ficando um pouco longo, mas espero que gostem.
Comentem.
Esta é uma
história de luta. Uma história sobre riqueza, ganancia, avareza, culpa,
destruição e morte. Esta é uma história sobre uma busca, um encontro, um
destino e um fim.
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PARTE 1
O sino da porta do bar balançou. Era um
dia quente de verão, fim de tarde e a taverna ainda estava fechada. As cadeiras
estavam todas viradas em cima das mesas e com calma o dono do estabelecimento
lavava e secava copos antes de reabastecer o tonel de cerveja.
– Hoje não abrirei – avisou o dono.
– Me desculpe, estou de passagem na
cidade e não sabia para onde ir. Mas tudo bem, eu já estou indo embora.
O cliente deu meia-volta e se dirigiu
para a saída.
– Espere um pouco. Se você não tem onde
ficar, pode passar a noite aqui. Desvire uma cadeira e sente-se.
– Muito obrigado.
Depois de se sentar o estranho cliente
permaneceu em silêncio. Era uma figura intrigante, usava uma túnica laranja-escuro
e vermelha, tinha a cabeça raspada e uma longa barba branca aparada de maneira
irregular. Se movia com vigor, apesar das fundas linhas de expressão indicarem
uma idade avançada. Ele parecia carregar algum tipo de arma nas costas, mas não
era possível distinguir o que era. Apesar de sua aparência tranquila tinha
cicatrizes no rosto. Odolfo, o dono da taverna, nunca havia o visto por aquelas
bandas.
– Tenho de avisar que não possuo bens
para pagar a minha estádia aqui.
– Não se preocupe com isso. Dizem que
trás boa sorte hospedar viajantes – falou Odolfo balançando os ombros. – Se
quiser você pode me pagar contando a sua história.
Ele olhou sem entender.
– Vejo que você é um viajante e eu gosto
de ouvir histórias. Ficaria feliz se você me contasse a sua.
– Tu não acreditarias.
– Sem querer lhe faltar com o respeito
senhor, mas já ouvi muitas histórias. Muitas delas nem são verdadeiras, apenas
contos criados por mentes bêbadas. Você está sóbrio, nada que você falar irá me
surpreender.
– Se é assim…
– Por sinal aceita uma bebida senhor?
– Apenas água. E por favor me chame
apenas de Chan.
– Muito prazer, me chamo Odolfo.
Chan tomou um gole de água e permaneceu
pensativo sem saber como começar.
– É um bastão que carrega as costas? –
perguntou Odolfo curioso para quebrar o gelo.
– Não, isso é uma lança. Eu sou um
caçador de dragão e esta é a minha arma.
– Espere um pouco.
Odolfo pegou um copo, serviu uma dose do
líquido translúcido em um copo e bebeu em um único gole.
– Estou apenas verificando se é mesmo
água.
– Vejo que já não acreditas em mim –
comentou Chan sem se surpreender.
– É que é difícil acreditar em uma história
que começa assim. Dragões são apenas lendas, então como você pode ser um caçador
de dragões?
– Não são lendas, pelo contrário, ele é
bem mais real do que podes imaginar.
– Ninguém nunca viu um dragão.
– Poucos sobrevivem depois de se
encontrar com eles. É por isso que as pessoas não acreditam mais. Quer que te
explique como nascem os dragões?
– Deixe-me adivinhar… Eles nascem de
ovos em altas montanhas?
Foi possível distinguir um leve sorriso
debaixo da barba de Chan. Ele estava achando graça no que Odolfo acabara de
falar.
– Tu estás redondamente enganado, jovem.
Vejo que irei ter que te explicar tudo desde o começo. A minha família era
rica…
– O que isso tem a ver com a história
dos dragões?
– Paciência. Já irei chegar nesta parte.
Imagino que deva parecer estranho alguém como eu dizer que venho de uma família
rica, mas realmente venho. Cerca de dez gerações atrás meu antepassado possuía
vastas terras e até mesmo um palácio. Ele se chamava Otto. Era muito engenhoso
e foi com o seu esforço que a fortuna de minha família se multiplicou
incontáveis vezes. Ele só tinha um defeito, era muito avarento e é por conta
disto que um dragão tomou forma.
– Então o seu antepassado se transformou
em um dragão? Ele foi amaldiçoado?
Chan teve que tapar a boca com as mãos
para não cuspir água quando riu. Odolfo então voltou a ficar em silêncio e
acenou para que ele prosseguisse com a história.
– Durante anos Otto acumulou riqueza.
Juntou ouro, platina, rubis e diamantes. Entretanto ele nunca se casou ou teve
filhos. Seu único parente era o seu meio-irmão, Joseph, um bastardo filho de
uma das serviçais. Como não tinha herdeiros preferiu esconder seu tesouro a
entregar para seu meio-irmão que jamais reconheceu em vida. Mesmo com a fama de
que sua fortuna podia preencher completamente uma sala como esta, ele conseguiu
fazer com que cada uma das moedas desaparecesse sem deixar rastro.
– E ninguém nunca procurou este tesouro?
– É claro que procuraram. Por duas
gerações inteiras os descendentes de Joseph vasculharam o palácio e tentaram
escavar o terreno. Mas como nada foi encontrado, com o tempo começaram a
imaginar que tudo não passava de uma história. Depois veio a grande crise e as
terras começaram a ser vendidas e trocadas até não sobrar quase nada. Agora me
responda uma coisa, tu sabes por que não se deve enterrar ouro?
– Por conta do perigo de se esquecer o
lugar onde enterrou?
– O maior risco não é esse – explicou
Chan. – Objetos ganham vida e forma depois de mil anos de existência, e moedas
de ouro e joia não se desfazem na terra. É por isso que quando se enterra uma
grande quantidade de ouro, um dragão pode nascer.
Odolfo estava de boca aberta, ouvindo
admirado aquela história.
– Eu também nunca acreditaria se não
tivesse visto com os meus próprios olhos. Quando ainda era um garoto decidi ir
para o templo que existia na grande montanha a leste das terras de minha
família. Era uma montanha gigantesca e além de levar três semanas de caminhada,
a escada entalhada parecia ter incontáveis degraus. Eu vivi durante dois anos
com os monges, ainda era um dos novatos, quando as primeiras notícias chegaram.
Pessoas que passavam pelo templo em busca de orientação espiritual sempre
acabavam comentando alguma coisa. E falaram que um dia, ergueu-se da terra uma
grande criatura dourada que com poucas batidas das suas fortes asas alçou voo.
– Então é um dragão que consegue voar?
– É claro. Se não conseguisse não seria
um dragão, apenas um lagarto de ouro crescido. Mesmo voando ele não era um
problema, e eu achava que aquilo era tudo apenas uma história. Diferentes
pessoas contavam sempre a mesma coisa, chegavam até mesmo a descrever o lugar
de onde saiu e reconheci ser parte das antigas terras de minha família. Até que
aconteceu o primeiro ataque. Pelos meus cálculos, foi mais ou menos um mês
depois que ele surgiu, uma aldeia ao norte foi incendiada. Todas as casas de
madeira e palha queimaram, e não se sabe quantas pessoas acabaram presas nas
chamas também. Diziam que o responsável tinha sido alguma coisa que veio do céu
e reluzia com o sol. Era o primeiro de muitos ataques que o dragão iria
cometer.
“Depois disso todos começaram a se
preocuparem. Vigias foram adicionados durante o dia para evitar que novamente
fossem pegos de surpresa, mas isso não foi suficiente. Já que sem avisos, houve
um ataque durante a noite. Outra aldeia incendiada. Ninguém sabia o motivo pelo
qual ele atacava, só sabiam que o gigantesco dragão descia do céu incendiando
tudo com um jato de fogo.
O chamavam de Drakon Kazimir Hiranya,
que significava o Grande Dragão Destruidor de Ouro, devido a toda devastação
que ele ocasionava. Com o tempo, reduziram seu nome simplesmente para Drazinya,
também conhecido como o Dourado. Por mais de um ano ele percorreu o planalto
que cercava a montanha destruindo todos os povoados, e apesar de inúmeras vezes
sobrevoar o templo na montanha ele jamais nos atacou.
Um dia ele desapareceu. Sabiam que ele apenas
estava procurando outros povoados mais ao sul e poderia retornar a qualquer
momento. Foi nesta época, no meio do caos que decidiram que o único lugar
seguro para se abrigar era o nosso templo. Gentilmente abrimos nossas portas
para hospedar quantos fossem possíveis no único lugar que era considerado seguro.
As pessoas queriam levar animais, roupas e demais pertences, mas não tínhamos
espaço para tudo, então pedimos para que trouxessem apenas o essencial.”
Chan
parou para tomar um gole de água e contemplou o teto pensativo, com um ar
nostálgico e triste.
–
Lembro-me até hoje daquele fatídico dia. Soubemos que o Drazinya estava
voltando, haviam avistado ele sobrevoando as aldeias ao pé da montanha. Algumas
pessoas pareciam aflitas, em geral as que por pouco sobreviveram de um de seus
ataques. Contudo as demais as acalmavam, dizendo para que não se preocupassem
que estavam em um lugar sagrado e por isso estavam livres de todo mal. Ainda
era de tarde, mais a noite parecia que ia ser fria, por isso junto com um
pequeno grupo, formado por meus dois primos, meu irmão, dois colega e eu, descemos
a montanha para buscar lenha e reabastecer o estoque.
“O
primeiro sinal de que algo estava errado foi o rastro de fumaça vindo na
direção do templo. Ainda estávamos subindo as escadas, com os braços carregados
de galhos. Abandonamos a lenha e corremos os degraus restantes. De nós cinco eu
fui o último a chegar. O lugar que eu passara a chamar de lar estava
completamente destruído. Não sabia quantas pessoas haviam conseguido fugir, nem
para onde. E no meio dos destroços ainda incendiados e fumegantes eu o vi. Mesmo
com isso tendo acontecido a mais de trinta anos ainda me lembro com detalhes a
sua aparência. Ele era grande, brilhante e majestoso. Os focos de fogo acessos
reluziam em suas escamas douradas. Deveria ter mais de três metros de altura e
pelo menos vinte de comprimento. Uma longa cauda, asas poderosas, garras e
presas translucidas e afiadas feitas de diamante. Seus olhos eram grandes rubis
do tamanho de minha cabeça e quando me encararam pude perceber que não eram
mais simples pedras. Eram os olhos de um monstro que me paralisavam de medo.
Sua boca mexia levemente, e demorei a entender o motivo disso, até vê-lo me
ignorar e voltar a vasculhar as cinzas em busca de tesouros. Ele se alimentava
disso. Comia platina, ouro, prata, cobre e joias. Foi por isso que ele nunca
tinha atacado o templo, pois não existia nada de valor lá. Entretanto com medo
os moradores que lá se hospedaram levaram suas poucas economias e havia sido
isso que atraiu a criatura e condenou a todos.
Meu
primo Aadi e meu colega Naren tentaram atacá-lo com os machados que carregaram
para cortar a lenha. Aadi bateu em sua pele causando um arranhão inofensivo. Naren
tentou mirar o rosto e acabou tendo a cabeça do machado devorada em uma mordida
e por muito pouco o seu braço não foi junto, apenas ficou quebrado. Com a cauda
ele atingiu meu primo arremessando-o longe e o matando na hora. Naren conseguiu
fugir. Naquele nosso primeiro encontro tudo que eu pude fazer foi ficar
tremendo até cair de joelhos sobre as cinzas de meu lar antes de vê-lo agitar
as suas asas, que lançaram uma forte corrente de ar, e alçar voo, desaparecendo
no entardecer.
–
Então ele se alimenta de tesouros? Sempre achei que dragões devorassem pessoas
e animais.
–
Eu nunca o vi devorar uma vaca ou uma ovelha. Já pessoas… Bem… é algo que acaba
acontecendo com certa frequência, principalmente as pessoas que usam muitos
colares e brincos ou carregam consigo sacos de ouro.
–
Então é por isso que você disse que não possuía nada para pagar sua estádia?
–
Exatamente. Todo caçador de dragão, a menos que queira colocar sua vida em
risco, nunca carregam aperitivos que possam fazer com que ele seja devorado.
–
Quando você diz todo caçador de dragão… Quer dizer que existem outros como
você?
–
Sim – concordou Chan. – Nós fomos os primeiros. Eu, meu irmão mais velho Kasi,
meu primo Petuel, e nosso colega que tentara o primeiro ataque, Naren. Meu
outro primo Aadi falecera, enquanto que Gyan se recusou a perseguir o monstro.
Ele preferiu ficar e tentar reconstruir o templo ao invés de buscar vingança.
“Era
vingança apenas para Naren que além de perder sua casa fora humilhado quando
seu ataque havia sido literalmente devorado. Para nós que erámos herdeiros
daquelas terras era mais o sentimento de culpa do que de vingança que nos motivava.
O nosso antepassado fora responsável pela criação daquela criatura, então cada
morte que Drazinya provocava, era nossa culpa. Depois de nós surgiram muitos
outros caçadores, à medida que os boatos se espalhavam. A maior parte estava
apenas interessado em obter riquezas ao derrotar o dragão e acabaram mortos por
falta de preparo. Aqueles que decidiam ir com armadura, espadas e lanças
acabavam sendo engolidos. Quem tentava atacá-lo com as mãos nuas não conseguia
causar dano.
–
Então como você o enfrentava?
–
Com isso – disse Chan tirando o bastão das costas e entregando para Odolfo.
Ele
desenrolou o fino tecido que cobria e observou a arma. Na verdade não era um
bastão, era uma lança. Tinha um longo cabo de bambu, que estava chamuscado em
alguns lugares e uma ponta afiada feita de um cristal vermelho-sangue.
–
A ponta é feita de um cristal chamado cinábrio, encontrado em regiões
vulcânicas. Dizem que é sangue cristalizado de dragão, e é a única coisa que
descobrimos capaz de feri-lo. Percebemos isso quando o seguimos até o extremo
leste e encontramos o grande vulcão. Até então ele nunca havia demonstrado
sentir dor, mas enquanto escavava essa região ele atingiu uma veia deste
cristal e soltou um grito de sofrimento. Eu escolhi forjar uma lança, pois o
comprimento dela ajuda quando se faz um ataque. Mas Naren, Petuel e Kasi
possuíam um machado, uma espada e uma alabarda, respectivamente.
–
E onde eles estão? Vocês decidiram se separar?
–
Podemos dizer que sim. Todos acabaram morrendo em luta. Primeiro foi o meu
irmão, que se sacrificou para que eu não fosse atingido por um ataque de sua
cauda. Isso foi mais ou menos vinte anos atrás, foi a primeira vez que tentamos
utilizar as nossas novas armas contra ele. Petuel conseguiu naquela ocasião
cortar a cauda dele, o que foi um grande ganho. No acesso de fúria de Drazinya,
e em meu descuido enquanto tentava socorrer meu irmão ganhei essas cicatrizes
no rosto. Na ocasião achei que morreria devido à profundidade do corte, mas
felizmente sobrevivi. O sacrifício de meu irmão não seria em vão. Nem sempre
conseguíamos segui-lo ou encontrá-lo. Tivemos mais oito ou nove encontros nos
quinze anos seguintes. Ele é inteligente, e percebendo que estávamos o
derrotando, se isolava em lugares de difícil acesso e só aparecia quando tinha
que se alimentar. Petuel acabou falecendo ao cair de um alto rochedo que
escalávamos. Já Naren encontrou o seu fim perante o fogo do dragão depois de
cegá-lo de um dos olhos. Foi a única vez que o vi expelir fogo em uma luta.
–
Achei que dragões sempre cuspissem fogo…
–
Ele usa isso apenas quando ataca vilarejos. Talvez ele tenha uma quantidade
limitada de fogo que possa usar, ou então precise fazer alguma coisa para
conseguir cuspi-lo. Naquela ocasião Naren já estava doente, e prometeu que não
morreria antes de exterminá-lo.
–
Foi nesse dia que vocês dois o mataram?
–
Não.
Chan
ficou em silêncio depois de dizer aquela única palavra. Passado alguns minutos,
Odolfo perguntou:
–
E como foi que vocês o derrotaram?
Com
um sorriso triste Chan respondeu:
–
Nós nunca o derrotamos. De todos nós sobrou somente eu. só me encontrei com ele
uma vez depois da morte de Naren, isso foi quatro anos atrás. Este está sendo o
período mais longo que já passei sem vê-lo. Imagino que não tenha a habilidade
nem a determinação necessária para fazer isso sozinho.
–
Talvez alguém tenha o derrotado.
–
Não. Encontrei poucas pessoas que se aventuraram em batalhas contra o Drazinya
e nenhuma delas continua viva. Não imagino que alguém sozinho tenha conseguido
sem preparo nenhum vencê-lo. Os boatos sobre aldeias incendiadas continuam, e
foi seguindo estes boatos que vim até aqui.
–
Quer dizer que ele ainda está vivo? Você continua atrás dele?
–
Gastei a minha vida o perseguindo e imagino que agora seja tarde demais para
ter arrependimentos sobre isso. Uma vida perseguindo ouro, atrás de vingança e
paz de espírito e tudo que eu consegui foram cicatrizes de batalha, a
destruição de todos os lugares pelos quais passei e perdi todos aqueles que
eram importantes para mim. Minha linhagem terminará comigo e a culpa da
existência desta criatura também.
–
Mas então ele irá continuar por aí? Até transformar o mundo em cinzas?
–
Nunca se sabe. Alguns dizem que dragões são imortais, outros que vivem mil
anos. De qualquer forma se eu não for capaz de pará-lo, acredito que só o tempo
irá.
Chan
brincou com o copo vazio que ainda estava sobre a mesa. Em seguida levantou-se
e fez uma reverencia como forma de agradecimento.
–
Obrigado por ouvir minha história e permitir que eu passasse a noite aqui, mas
acho que chegou o momento de partir.
–
Pelo menos espere amanhecer antes de ir embora. Você não será incômodo nenhum.
Venha, eu tenho um quarto disponível.
Chan
aceitou o convite e o seguiu. Antes de deixar o aposento, Odolfo se atreveu a
fazer mais uma pergunta:
–
Agora pouco você agradeceu por eu ter ouvido a sua história, isso significa que
não é real?
–
Só tu poderás decidir se é real ou não. Independente do que eu diga, tu podes
acreditar ou não.
O
dono da taverna demorou a adormecer naquela noite pensando no fantástico relato
que escutara. Quando acordou na manhã seguinte e foi até o quarto em que Chan
se hospedara e ele já não estava mais lá.
PARTE 2
O sol estava nascendo e Chan já estava
na trilha de terra batida que o levava para fora do vilarejo. Havia sido ótimo poder
descansar por uma noite, e se atreveu até mesmo a contar sua história para um
completo desconhecido. Ele olhou para trás uma última vez antes de balançar os
ombros. Odolfo nem sequer acreditava em dragões não seria um problema o que ele
pensasse a seu respeito. Agora tinha algo mais importante para se preocupar.
Depois de tantos anos em sua busca se
distanciara bruscamente do lugar que um dia chamou de lar. Viajara por todo o
país, mais jamais fora além dele. Talvez o Drazinya temesse voar sobre os mares
e acabar não encontrando terra firme. Não sabia por quanto tempo ele podia
voar, nem sequer se ele sabia nadar, e por isso desenvolveu esta teoria. Agora
pela primeira vez depois de trinta anos estava voltando para casa e desta vez
não seria apenas de passagem.
Se perguntava como o templo estaria. Se
Gyan havia conseguido reconstruí-lo e se tinha algum discípulo. Pensou em
passar por lá, mas antes teria outro lugar para visitar, naquela mesma montanha
do outro lado dela.
Depois de duas semanas de caminhada teve
os primeiros indícios de que estava perto. O cheiro de queimado pode ser
sentido antes de chegar à aldeia. Parecia que eles nunca aprendiam, sentiam-se
seguros quando não ouviam notícias do dragão e voltavam a acumular riqueza que
só trazia destruição e morte. A maior parte dos aldeões parecia ter sobrevivido
desta vez, e começavam aos poucos a reconstruir as casas. Aprendera a
reconhecer os sinais e calcular a quanto tempo tinha acontecido o ataque mesmo
sem perguntar para ninguém. Sabia o tempo que normalmente levava para que ele
conseguisse queimar tudo e revirar as cinzas, e quantos dias até que as pessoas
saíssem de seus esconderijos e começassem a reconstruir tudo. O ataque tinha
sido recente, uma ou duas semanas no máximo. Se ele tivesse parado para
descansar depois do lanche, só haveria um lugar em que ele poderia estar, assim
como os boatos diziam… Em uma caverna no topo da alta montanha.
Mesmo com a longa escadaria o templo
ficava na metade da montanha, em uma região que formava um planalto antes de
uma nova íngreme encosta até o cume. Chan não queria que ninguém soubesse o que
estava fazendo, além de estar do outro lado da montanha. Seria uma longa
escalada.
No começo foi fácil. Estava habituado a
escaladas. Levara apenas o essencial, mesmo assim a bagagem o atrasava. Não
sabia se encontraria água ou comida na subida, por isso se abastecera para pelo
menos duas semanas. Escalar com as mãos nuas só era possível para aqueles que
tivessem preparo físico e habilidade de reconhecer os pontos certos para se
segurar. Uma das coisas mais importante era se certificar que tinha três pontos
de apoio antes de largar uma mão ou um pé, e assim lentamente ir subindo.
No terceiro dia o apoio de seu pé
esquerdo acabou partindo quando estava mudando o direito. Graças a seu treino,
conseguiu se segurar apenas com os braços por tempo suficiente para achar um
novo lugar para colocar os pés e em seguida continuou a escalada.
No quinto dia, a temperatura mudou
bruscamente. Sabia que quanto mais subia, mais frio ficaria, mas não esperava
os fortes ventos que tentavam o arrancar das pedras e arremessá-lo para baixo.
Teve que subir com mais cuidado ainda. Sua sorte era que a escalada não era
apenas uma grande escarpa, então conseguia encontrar locais planos para passar
a noite e descansar. Não tinha material para fazer uma fogueira, então tentava
se aquecer da forma que podia e encontrar algum local onde estivesse protegido
da correnteza fria.
Apenas no décimo dia, quando pensou que
jamais atingiria o topo que encontrou uma caverna. O terreno estava
escorregadio e traiçoeiro, Chan teve que se mover para a esquerda para
finalmente conseguir entrar no local. Apesar de parecer apenas mais uma grande
caverna natural na montanha, ela não estava repleta de gelo como os arredores,
pelo contrário, parecia ter suas paredes até mesmo chamuscadas.
E lá estava ele. Enrolado no fundo da
caverna como um animal que se protege do frio, mas isso não o deixava menos majestoso.
Continuava a reluzir com a pouca luz que vinha de fora da caverna. Com o passar
do tempo adquiriu cicatrizes devido as batalhas travada contra os caçadores. Graças
a sua alimentação conseguia se recuperar, mais vários dos cortes tinham se
recuperado com cobre ou prata ao invés de ouro mudando um pouco a impressão que
ele transmitia, o deixando com uma aparência mais selvagem.
Ele crescera poucos metros, mesmo assim
jamais recuperara a ponta da cauda ou o olho perdido. De alguma forma
conseguira perder um de seus dentes de diamante, deixando para trás apenas um
lugar vazio e uma cicatriz no lábio logo acima dele.
Quantas pessoas ele derrotara? Quantas
vilas ele incendiara? Agora era a chance de Chan acabar com tudo aquilo. Pegou
sua lança presa as costas e desenrolou o tecido que a protegia. Drazinya moveu
a cabeça o encarando com pouco interesse. Mesmo seu rosto de ouro imutável
parecia ter envelhecido um pouco nos trinta anos que passara.
Chan não sabia se ele tinha um coração
que pudesse perfurar, mas deduzia que se cortasse sua cabeça o mataria. Só
havia uma maneira de ter certeza.
De alguma forma, parecia frio um final
assim, sem que ele reagisse, sem trocar uma única palavra. Chan nunca parou
para pensar se ele o entendia ou não, imaginava que sua consciência era como a
de uma criatura selvagem e nada mais do que isso.
– Olá velho amigo – cumprimentou Chan.
Amigo não era a melhor palavra, mas ele não
conseguiu pensar em nenhuma outra que pudesse usar. O dragão balançou a cabeça
voltando a se deitar.
Algo estava definitivamente errado, ele
nunca havia visto Drazinya tão abatido. Ele sempre mostrou um grande e
imbatível espirito de luta e jamais daria as costas a um inimigo. Isso
facilitaria muito o seu trabalho, no entanto mesmo sendo um monstro, parecia
errado atacá-lo enquanto ele estava tão indefeso.
Chan deu alguns passos em sua direção
com a lança mirando a garganta. Sabia que mesmo sem o dragão estar o vendo
podia sentir sua aproximação. Mesmo assim nada aconteceu.
– Isso é patético. Não posso matar uma
criatura indefesa – disse revoltado para si mesmo.
Sabia que possivelmente esta era a sua
última oportunidade. O tempo passara para ele também e não teria forças para
continuar aquela busca por muito mais tempo. Se não acabasse com ele agora, o
melhor seria desistir de vez de ser um Caçador.
Sim. Era isso que faria. Tentou quebrar
a lança em dois pedaços, mais a flexibilidade do bambu fez com que ela apenas
envergasse e não quebrasse. Então havia mais uma única coisa que poderia fazer.
Caminhou para fora da caverna e observou a montanha que escalara. Se
arremessasse lá embaixo, ninguém jamais encontraria. O vento uivava enquanto
pequenos flocos de neve caíam. Tinha que ficar o mais para ponta possível, para
evitar que a lança atingisse a montanha e causasse algum deslizamento.
Foi então que a tragédia aconteceu. O
terreno sob seus pés cedeu, arrastando Chan para o abismo e a morte certa.
Rápido como um relâmpago Drazinya surgiu ao seu redor, o segurando e empurrando
para dentro com o próprio corpo. Esta ação foi o que o salvou da morte imediata,
mas ao mesmo tempo condenou o dragão. Chan sustentava a lança horizontalmente, pronto
para arremessá-la o mais longe possível. Quando foi salvo, o esforço de
Drazinya fez com que a lança perfurasse seu próprio corpo e quanto mais esforço
ele fazia para salvar o fraco humano, mais fundo a arma penetrava em seu peito.
E enquanto o perigo passava e Drazinya
soltava grunhidos de dor, de alguma forma Chan conseguiu entender tudo. Foi
como se todas as memórias e sensações que o dragão teve fossem transmitidas
para ele, inundando a sua mente. Desde o seu nascimento até a sua morte.
E no fim, tudo que Chan podia fazer era deixar
as lágrimas rolarem sem parar enquanto abraçava o grande dragão. Por muito
tempo acreditou que matá-lo seria a forma de impedir que ele causasse mais
mortes e destruição. Entretanto era justamente o contrário. Ele nunca tentara
matar ninguém, sempre dera uma segunda chance para todos. Apenas aqueles que se
importavam mais com seus bens do que com suas vidas que acabavam sendo
consumidos pelas chamas.
Chan nunca notara, que cada vez que as
construções de um lugar eram destruídas, isso tornava as pessoas que lá viviam
mais unidas e mais fortes. Drazinya não carregava consigo a destruição. Ele era
um meio e sabia qual seria o fim. Sempre achou que sem ouro o dragão morreria
de fome. Mas ouro é apenas o alimento da cobiça e da inveja dos homens.
Drazinya nunca tivera a intenção de
matar seu irmão ou Naren. Foi apenas autodefesa e um acidente. Assim como
muitas outras lutas que tivera. Sempre assustara primeiro os guerreiros,
devorando suas armas para só então atingi-los. E esse esforço começara a
matá-lo. O ferro das armaduras e espadas estava enferrujando e o destruindo por
dentro. Ele sabia que não poderia viver para sempre, que sua missão teria um
tempo limitado e por isso intencionalmente mostrara para eles a veia de
cinábrio, para que assim anos depois, pudesse encontrar o seu fim, não em uma
luta, mas em um acidente enquanto tentava salvar uma vida.
A verdade é que o grandioso dragão
realmente tinha um coração; um coração de ouro.
Foi assim que a lenda de Drazinya chegou
ao fim. Com o tintilar de milhares de moedas enquanto suas escamas douradas
voltavam a sua forma normal e com um último grunhido a criatura morria deixando
para trás o maior tesouro de todos os tempos.
Chan ficou entorpecido sem saber o que
fazer. Desistira de sua vida para perseguir e destruir o dragão e infelizmente
agora conseguira. De alguma forma não estava tão bem quanto imaginara que se
sentiria. Não tinha mais objetivo e acabara de matar a única criatura que o
conhecia e entendia.
Só então percebeu que mesmo tendo sido
salvo da morte, tinha um profundo corte na perna. Seria impossível descer a
montanha assim. Sua vida perdera o sentido, o mínimo que poderia fazer era usar
as suas ultimas forças para proteger aquele tesouro.
Retirou a lança que estava parcialmente
enterrada no ouro, caminhou alguns passos até a saída da caverna e a fincou no
teto. As pedras começaram a ceder e com um sorriso Chan olhou pela última vez
para fora. A entrada da caverna estava selada para sempre ou pelo menos por
mais mil anos, até que o ouro novamente tomasse forma e Drazinya retornasse
para que com suas chamas tornasse o mundo um lugar um pouco melhor.
Fim.
Parabens, otimo conto
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