domingo, 14 de outubro de 2012

A batalha de xadrez no coliseu do vento



 Um título relativamente curto para um conto relativamente longo e talvez não tão feliz assim. Espero que gostem. Prometo que quando dominar o mundo não farei uma arena de xadrez assim. Imagino que, ela seja branca, ou acinzentada. E sem sombra de duvida, quando construir um coliseu, será de um tom diferente.


 


Tudo que eu pensava enquanto andava por aquele corredor até a arena era que estava prestes a enfrentar mais um jogo de xadrez. Era apenas mais um jogo de xadrez. Percebendo o meu nervosismo, o homem que controlava a grande torre colocou sua pesada mão em meu ombro. Ele era alguém de poucas palavras, tudo que eu sabia sobre ele, durante os longos meses de treino que passamos juntos, era o seu nome: TBH.
Certo. Este não era o nome verdadeiro dele. Eu sabia disso e ele também. Mas a partir do momento em que você entra em uma equipe o seu nome é deixado para trás e tudo que te resta é a sua classificação. Ele era a torre branca da casa H, por isso TBH. Infelizmente eu era o PBG, e os íntimos me chamavam apenas de PG, o peão G. Não era uma peça importante, mas era tudo que eu havia conseguido obter.
Parece ser loucura se oferecer para participar de uma equipe de xadrez. Todos me falaram isso. Diziam que se eu quisesse jogar a minha vida fora, era mais fácil simplesmente pular da ponte. Mas eu não queria desperdiçar minha vida, pelo contrário, eu estava tentando transformá-la em algo muito melhor. O fato de que a equipe vencedora terá qualquer desejo realizado era tentador demais para mim. Existem coisas que só se podem obter com uma oportunidade destas. E como esta é a única maneira que eu consegui pensar para tentar cumprir meus objetivos, decidi arriscar.
O exame de seleção é algo simples. Eles te dão um questionário com apenas uma questão: “Qual peça de xadrez você quer ser?” e tudo que você tem que fazer é escolher a que mais lhe agradar.
Fiquei em duvida entre o poder bruto de conduzir uma torre, a perspicácia de um bispo e a agilidade de um cavaleiro. Sabia que optar por ser o Rei também era uma decisão válida, mas talvez fosse muito difícil para mim, alguém inexperiente. Por isso, depois de muito ponderar assinalei cavaleiro e entreguei ansioso o meu formulário. No dia seguinte fui chamado, havia sido aceito para ser um peão.
Era uma peça patética, mas, depois que se aceita participar de um jogo, não tem mais volta. Tive o prazer de encontrar com o antigo PBG, que já enfrentara duas batalhas. Ele era apenas três anos mais velho do que eu, mas parecia ser muito mais do que isso. Seus cabelos estavam completamente brancos e ralos e apesar de ter um ótimo físico, parecia que tinha perdido toda a sua vitalidade.
– Então você conseguiu vencer uma batalha?
Ele acenou em concordância, abrindo um fraco sorriso.
– E o que desejou? Ouro? Joias? Palácios?
Com a voz fraca, ele me respondeu quase em um sussurro:
– Desejei não ter mais que jogar…
Cambaleando ele me entregou seu gasto escudo. Proferiu mais algumas palavras que no momento não entendi e desapareceu de vista.
Aquilo me intrigou. Ele podia pedir praticamente qualquer coisa para os Donos do Mundo, e justamente pediu para não jogar mais?
Antes de continuar, deixe-me explicar uma coisa. De alguma forma, de uma noite para a outra o mundo foi dominado. Uma grande empresa, liderada por duas pessoas conseguiu comprar toda e qualquer outra empresa no planeta. Todos os serviços pertenciam agora a esta misteriosa corporação que sustentavam como símbolo um escudo com a heráldica de uma coroa e de uma flor-de-lis. Detendo todo o poder financeiro, a possibilidade de contratar e demitir quem quisessem e todos os serviços essenciais se tornou impossível lutar contra ela. O mundo em parte melhorou. Em parte não. No início advogados entraram com recursos, membros especiais da polícia investigaram, mas não havia nada, absolutamente nada que pudessem utilizar contra eles.
Então aceitamos o fato de que agora oficialmente o mundo tinha donos. Acho que em algum momento a Lua também acabou sendo comprada. Não sei exatamente como o dinheiro pode comprar a Lua, mas foi isso que aconteceu.
Nove anos atrás eles montaram uma grande cidade com um Coliseu. E decidiram que dali em diante, quem quisesse poderia montar uma equipe para jogar xadrez. O vencedor teria o que quisesse, desde que isso não colocasse em risco a própria segurança dos Donos do Mundo.
As regras são simples. As equipes formadas precisam de dezesseis pessoas, uma para lutar como cada uma das peças. Cada equipe treina como lhe convém. Pode-se escolher um líder, um estrategista para conduzir os outros ou deixar que cada um faça seus próprios movimentos. Tudo que os Donos querem, é poder assistir um jogo emocionante.
Como tem equipes distribuídas pelo mundo todo, existe uma chance de você ser chamado para participar da batalha em cada final de semana. Já ouvi histórias de equipes que foram sorteadas na mesma semana em que foram formadas não tendo tempo nenhum para treinar, enquanto existem outras que estão há nove anos treinando e jamais foram chamadas.
Tivemos três meses e duas semanas de treino antes desta nossa primeira partida. Era pouco tempo para treinarmos, mas tempo suficiente para se criar vínculos com as outras pessoas. Tínhamos todos praticamente a mesma idade, entre dezoito e vinte e oito anos. Alguns como eu eram novatos, que estavam substituindo peças que conseguiram de alguma forma sair do jogo ou acabaram sendo capturadas.
Diferente dos treinos, a partida real apresentava certo perigo. Era mais uma batalha do que uma partida. Lutávamos em uma arena preta e branca gigantesca, onde cada uma das casas tinha três metros de largura por três de comprimento. O grande problema do Coliseu era o vento. Existiam ventos que pareciam vir de todas as direções tão fortes que te impediam de se mover. E era justamente este vento que definia como cada peça deveria se mover.
As torres eram pessoas que conduziam helepolis que atiravam destrutivas balas de canhão. Com sua estrutura grande e reforçada, eram uma das únicas peças que podiam se mover livremente na horizontal e na vertical quantas casas quiserem, encarando abertamente o vento na direção em que seguiam.
Os cavaleiros, munidos com arcos e flechas e uma velocidade incrível, eram capazes de abrir as correntezas de vento com as suas flechas e se mover com velocidade nestes pequenos intervalos em que as correntes de vento diminuíam. Conseguiam andar por três casas nestes intervalos, e quando os ventos retomavam com ainda mais violência, eles acabavam sendo empurrados uma casa para o lado.
Os bispos não tinham força, nem velocidade. Mas eles conseguiam analisar as correntes de vento e sabiam como se mover pelo tabuleiro em diagonal de modo a evitá-las. Normalmente empunhavam lanças longas.
Os peões tinham escudos que nos ajudavam a andar para a frente, casa a casa, lutando contra o vento. Podíamos atacar balançando nossos escudos, mas só tínhamos força suficiente para golpear na direção em que o vento era mais frágil, as diagonais.
O rei era aparentemente tão frágil quanto os peões. Ele tinha um escudo consideravelmente mais poderoso, que desviava o vento o permitindo seguir e atacar em qualquer direção.
Por fim a rainha, era a peça mais poderosa. Sustentando uma espada, ela era a única que combinava força e inteligência, sendo capaz de andar quanto quisesse em linha reta ou na diagonal. A única coisa que não era capaz de fazer era saltar sobre outras peças como o cavaleiro. Mas isso, comparado com todo o seu poder, não era praticamente nada.
Eu admirava profundamente a Rainha, talvez fosse até mais do que admiração. Adorava vê-la percorrer com graça o tabuleiro enquanto os seus cabelos castanhos levemente armados esvoaçavam com o vento. A sua expressão fria, enquanto derrotava outros inimigos. Nunca a vira em uma batalha real, então não sabia realmente como era a sua expressão quando acabava fazendo alguma peça ser capturada.
Além do vento, existe uma outra grande diferença no tabuleiro. A forma como as peças são “capturadas”. Quando uma peça ataca a outra, normalmente não a machuca, ela atinge o chão. Não sei como foi feito, mas ele parece liquefazer e assim engolir a peça inimiga. Você é capturado pelo próprio tabuleiro.
O longo corredor pelo qual andávamos, desembocou em uma saída trancada por grade. A grade se ergueu e um a um entramos no campo. O coliseu era enorme, muito maior do que eu imaginava e parecia que milhares de pessoas estavam sentados na arquibancada para assistir o jogo.
Eu segui para a minha posição. Todos verificaram suas armas. Eu estava com o mesmo escudo do meu antecessor. Tudo que eu fizera foi tentar poli-lo, sem muito sucesso. Olhei para o inimigo, cerca de quatorze metros a frente. Eles pareciam confiantes, com certeza aquela não era a primeira batalha deles.
– Que comece a batalha! – Soou uma voz através de todo o campo.
Naquele momento várias coisas passaram em minha mente. O motivo de estar ali, a curiosidade por saber quem eram os Donos do Mundo e como eles o dominaram. Quando nós vencêssemos eu pediria para conhecê-los. Adquirir conhecimento, saciar minha curiosidade, para mim isso era mais valioso do que qualquer quantidade de ouro.
Já havia acontecido três jogadas de cada lado enquanto eu estava perdido em meus devaneios. Me abaixei assim que ouvi o zumbido do ar sendo cortado, e pude ver o cavaleiro saltando sobre a minha cabeça. Sendo o peão G, eu normalmente demorava para entrar no jogo, já que diferente da maioria, eu não precisava me mover para liberar a passagem para quem estava atrás de mim.
– PBG, mover para G3.
Era o meu grande momento. Segurei com firmeza o escudo na minha frente e andei aqueles míseros três metros, com mais dificuldade do que imaginava. Era como se eu tentasse empurrar um helepolis sozinho.
Não ataquei ninguém no decorrer do jogo. Apenas mantive minha formação. Perdemos o Cavaleiro Branco B. O time adversário perdeu um peão. E a cada jogada a plateia ia ao delírio.
Quando cheguei na casa G5 fiquei frente a frente com outro peão. Não teria como eu continuar avançando a menos que alguma outra peça aliada o capturasse. Agora teria de aguardar eu ter novamente alguma utilidade. Olhando meio desnorteado pelo campo, tentando entender o que estava acontecendo no jogo.
Pude ver uma helepolis afundar e sumir. E em outro lado, ouvir o grito de desespero de alguém. Ficar parado ali começava a me deixar inquieto. Para onde as pessoas iam depois que eram capturadas?
Então a bela Rainha surgiu na casa a minha frente, atingido o chão onde o peão inimigo estava, esperando ele ser engolido pelo tabuleiro e então ocupando o seu lugar.
Troquei apenas meia dúzia de palavras com ela. Mesmo em campo, dificilmente ficávamos tão próximos a ponto de podermos conversar e eu nunca sabia ao certo o que dizer.
– Estamos sendo derrotados – me comunicou ela. – Já perdemos importantes peças, e se não conseguirmos deter a rainha negra, iremos perder este jogo.
– Existe alguma coisa que eu possa fazer?
Ela balançou a cabeça.
– Você é só um peão. Tente ficar em posição protegendo alguma outra peça. Esta é a sua melhor opção. Iremos tentar avançar e capturar a rainha dele. O cavalo irá avançar, você precisa dar cobertura a ele, e no momento certo a pegaremos.
– Ela irá cair em uma armadilha dessas?
– Se oferecermos a isca certa…
Demorei um momento para entender o que ela estava tentando dizer com isso. Ela andou do G5 para o F6 se preparando para a grande jogada.
– Você que será a isca?
– Não temos outra escolha. Comigo servindo de isca teremos a melhor chance.
– Mas você será capturada. O que acontece com aqueles que são capturados?
Ouvi a ordem dizendo que eu devia me mover para o G6, mas eu não queria avançar, queria continuar conversando com ela.
– Eu ficarei bem – disse ela tentando mascarar o medo.
Eu me movi. O cavalo já estava na posição F7. Na jogada adversária, a rainha acabou sendo responsável pela captura do Peão Branco B, que continuava na sua posição original, B2.
A minha rainha se moveu para o E5. Era claramente um convite para uma armadilha, mas esta seria a melhor jogada que a Rainha Preta poderia fazer. Outros movimentos resultariam em trocas de peças menos vantajosas.
Então ela atacou. E pude ver a Rainha a menos de oito metros de mim ser tragada pelo chão liquefeito.
O cavaleiro atacou em revanche e assim, as duas rainhas deixaram o jogo.
Das trinta e duas peças iniciais, sobrava agora apenas nove. Cinco adversárias e quatro aliadas, contando comigo. Nossas opções não eram muitas. Um peão, um rei, um cavaleiro e uma torre. Contra dois bispos, uma torre, um rei e um peão.
Levou duas jogas, mas conseguimos pegar o peão inimigo, igualando o número de peças mas não o poder delas.
Eu sabia que só restava uma coisa a fazer. Logicamente, naquela altura, já havia entendido o perigo do jogo e o motivo das equipes sempre estarem recrutando outras pessoas. Apenas as peças que não foram capturadas voltavam, para todas as outras era o fim.
O conselho, do antigo PBG, passou pela minha mente e desta vez pude ouvi-lo com clareza. “Garoto, se você quiser voltar para a sua cidade, jamais seja capturado. Muito menos seja promovido. Pois tudo que obterá com isso, será a morte.”
Mesmo que eu vivesse para jogar mais uma vez, não iria conseguir realizar meu desejo de conhecer os donos do mundo caso perdesse. E de qualquer forma, este desejo já pouco me importava.
Quando começou a nossa rodada, antes que o Rei pudesse dar a ordem da próxima jogada avancei para a próxima casa. O caminho estava livre. Eu só precisava de mais uma jogada.
Percebendo o movimento suicida que eu estava prestes a fazer, o inimigo tentou posicionar as peças para contra-atacar. Entretanto, já era tarde demais. Ele moveu a sua Torre. E eu me movi, atingindo um feito histórico para qualquer Peão: chegar a fileira oito por vontade própria.
Eu me concentrei, e desejei que a Rainha pudesse estar ali. Não sabia exatamente como funcionava a promoção. Talvez esta regra nem sequer existisse naquele xadrez gigante. Mas então, senti o piso amolecendo, e vi uma mão emergir do chão. Então surgiu o braço, e pouco a pouco, a Rainha retornou.
O tempo desde que ela fora capturada até agora, tinha sido de apenas vinte minutos. Mesmo assim, ela parecia outra pessoa. Estava engasgada, com cortes e feridas, tinha uma marca de mordida no braço e estava toda suja, como se tivesse mergulhado na lama.
– O que você fez…?
– O que você me disse para fazer como peão, proteger outra peça.
 – Mas não era para se sacrificar por conta disso!
– Eu não me sacrifiquei por ser uma peça de xadrez, me sacrifiquei por ser uma pessoa. Por mim, e principalmente por você. Eu… eu gosto de você. Sempre gostei. Eu te amo.
A expressão da Rainha parecia uma mistura de compaixão, empatia e pena.
– Me desculpe, mas não retribuo seus sentimentos. Eu amo o rei.
Não foi um choque, mesmo assim foi doloroso.
Existem momentos na vida em que você se arrepende de coisas que fez e deixou de fazer. Poderia ter me despedido de meus conhecidos. Ter ouvido os conselhos dos outros. Ter falado com a Rainha meses atrás, antes deste momento final. Ter tomado tantas outras escolhas…
No entanto existem outros momentos, onde não há mais tempo para arrependimentos. Quando você está sendo engolido pelo chão e praticamente só resta a cabeça para fora é um destes momentos.
– Droga. Agora por minha causa você irá…
Ela chorou. Mesmo com todos os inimigos que a vi vencer, sempre manteve a mesma expressão fria, jamais tinha demonstrado sentir pena, nem contra os seus inimigos ou com o sacrifício de seus aliados.
– Está tudo bem – eu disse tentando parecer confiante enquanto tentava ficar para fora. – Só posso dizer que foi divertido jogar xadrez ao seu lado.
No fim eu já nem estava mais preocupado com o meu coração partido. A sensação de algo escamoso passando próximo a minha perna era o que naquele momento mais me assustava.
A plateia do Coliseu urrou emocionada. Eu tentava calcular quantas jogadas seriam necessárias para terminar o jogo. Vi as últimas lágrimas da Rainha e de relance pude ver os Donos do Mundo em uma posição de destaque na plateia.
Eu estava com medo, muito medo, mas naquele último momento agi com bravura e enquanto eu, o Peão Branco G, era tragado pelo tabuleiro ao invés de me desesperar, eu apenas sorri.

2 comentários:

  1. Meu... Você e seus finais que deixam os corações partidos! Muito legal toda a ideia desse teu conto. Fico só na esperança de que a rainha vença o jogo e como pedido chame de volta o protagonista, né?! Gostei demais cara! Valeu Rafa!

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  2. Muito bom esse texto! Nunca tinha lido nenhum dos seus antes, mas gostei bastante. Um beijoo!

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