Previsão um

Laurenne de Gavriewallis


E
nquanto os bardos percorriam os feudos, crianças animadas os perseguiam para ouvir suas mágicas histórias. Até mesmo no distante feudo de Caerwyntc, no extremo leste do país, sempre que aparecia alguém carregando um alaúde instantaneamente formava-se uma multidão e ele se via obrigado a adentrar a taverna mais próxima ou mesmo sentar-se ao chão para narrar uma de suas fábulas antes de conseguir prosseguir a viagem. Apesar de serem muito populares não eram todos que gostavam deles. Um exemplo disso era Alex, que não gostava das trágicas histórias dos heróis que haviam morrido na guerra dos noventa e oito anos, das batalhas sangrentas e de todas as outras aventuras enquanto exploravam reinos vizinhos e se aventuravam em cavernas escuras.
Com apenas sete anos ele preferia ficar correndo sozinho pelo bosque próximo de casa e utilizando pedaços de galho seco para acertar árvores aleatórias, durante o tempo vago em que não ajudava o seu pai, Demetrius, nas plantações. Enquanto as outras crianças sonhavam em serem heróis e princesas, tudo que ele desejava era ter um emprego digno para que pudesse ajudar a família e se tivesse sorte até mesmo se mudar da simples casa de palha nos limites do feudo, para algo mais seguro.
Com oito anos começou a visitar o centro do vilarejo e deixou os cabelos castanhos claros crescerem. Uma atitude que somada as suas roupas remendadas resultou em varias provocações das demais crianças, implicando sobre como ele parecia com uma garota. Normalmente era neste momento que viam a fúria em seus olhos cinzentos e iniciava-se uma violenta briga, que só era detida por algum adulto da aldeia e a essa altura uma das crianças já estava com o nariz sangrando ou com um dos olhos roxo.
Graças ao constante trabalho para arar a terra, plantar e colher – desde abobora até vagens – adquiriu gosto pelo trabalho pesado. Com nove anos decidiu cortar o cabelo e começou a deixar de ser o garoto franzino com quem os outros implicavam. Era o momento de procurar um trabalho melhor do que ser um aldeão. Foi assim que resolveu participar da escola de cavaleiros.
Apesar de seus pais serem contra, devido a todos os riscos existentes nessa profissão, era um trabalho que normalmente pagava bem se você tivesse talento e sorte. Afinal você dedicaria sua vida e a colocaria em risco para proteger alguém da nobreza que talvez nunca aprendesse a pronunciar corretamente o seu nome.
Como não era filho de nobre e não tinha indicação alguma teria de contar simplesmente com a sorte. Dirigiu-se pela primeira vez para o castelo que ficava na parte mais alta da vila, como na maioria dos feudos, e tentou convencer um dos guardas do portão a deixá-lo conversar com um dos instrutores.
– Você quer falar com um dos instrutores do castelo? – Perguntou o guarda em tom de zombaria – Para que?
– Quero treinar para ser um cavaleiro – Disse Alex da forma mais decidida possível.
– Alguma recomendação?
– Não e antes que pergunte meus pais também não são da nobreza. São camponeses no limite do feudo.
– Sinto, mas não posso deixá-lo entrar – Disse o outro guarda.
Alex virou-se, como se fosse ir embora e sentou-se no chão. Ficou durante o dia todo esperando uma oportunidade de conversar com alguém que estivesse de passagem. No dia seguinte fez o mesmo, e continuou assim por mais quarenta dias até que a porta foi aberta por dentro e um homem de barba por fazer e cabelos negros pediu que o seguisse. O garoto olhou para os guardas que já simpatizados com ele, acenaram apoiando para que ele entrasse.
– Qual é o seu nome? – Perguntou o homem com uma voz grave e ressoante depois que adentraram o castelo.
– Alex Hollis.
O senhor virou-se e o encarou levantando uma de suas sobrancelhas.
– Algum problema? – Perguntou Alex nervoso.
– Não – Explicou ele enquanto o brilho de seus olhos desaparecia – Eu sou Sir Conlan Sheridan. Você já ouviu falar de mim?
– Não – Respondeu Alex sincero.
– Já esperava por isso – Disse Sir Conlan com um suspiro – Por um acaso você sabe empunhar uma espada?
– Não.
– Montar a cavalo?
– Também não.
– Sabe ler? Escrever? Se portar diante de um nobre?
– Não – Voltou a responder Alex sentindo-se cada vez pior com a situação.
– Quantos anos você tem?
– Completei nove no ultimo mês.
– Um pouco velho. Normalmente os garotos iniciam o treinamento aos sete anos. Parece que teremos um longo caminho e muito tempo a recuperar.
Continuaram a caminhar pelos campos gramados do interior do castelo. Não aguentando o silêncio e a curiosidade, Alex perguntou:
– Desculpe Sir Conlan, mas porque o senhor permitiu que eu entrasse no castelo?
– Não era isso que você queria? – Revidou a pergunta interrompendo a caminhada bruscamente.
– Sim, eu realmente queria isso. Mas não possuo indicação, nem conhecimento. Como o senhor mesmo disse, eu já sou velho se comparado aos outros alunos que iniciam sua trajetória aqui.
– Tudo que eu procuro em um pupilo é determinação. Pelo que eu vi nos últimos dias, isso você tem de sobra.
O garoto ficou constrangido.
– E não vá ficando convencido garoto, ainda não tenho certeza se você é o que eu procuro. Irei fazer um teste, se dentro de um mês você não conseguir me provar que é apto, irá retornar para o campo de onde você veio. Só depois desse teste irá ser considerado um pupilo em treinamento. Então é melhor tirar esse sorriso do rosto.
– Sim senhor – Disse Alex tentando ficar o mais sério possível.
Quando Sir Conlan virou-se e voltou a andar, ele abriu um sorriso.
Apesar de estar dentro dos altos muros do castelo, ainda existia um bom trecho a ser percorrido até conseguir chegar à construção principal tão fortificada quanto a muralha externa. Existiam vários guardas por todo o caminho. Dois fixos na porta, alguns fazendo patrulha pelo perímetro e outros de vigia no alto do castelo carregando balestras ou arcos de longo alcance.
Nos grandes campos haviam alguns instrutores e alunos mais velhos que se exercitavam concentrados. Empunhando espadas de madeiras e atingindo alvos de palha, treinavam as repetições que poderiam salvar sua vida em uma luta.
– Eu irei treinar esses movimentos agora? – Perguntou o garoto curioso.
– Paciência. Hoje iremos começar com algo um pouco diferente...
– Cortar lenha?
– De onde tirou essa ideia? Não. Você primeiro tem que aprender a ler e escrever – Respondeu Sir Conlan o deixando em uma entrada lateral do castelo – E principalmente saber como se portar.
– Por que eu preciso aprender isso?
– Muitas vezes uma batalha pode ser finalizada antes mesmo de ser iniciada. Se você como capitão de uma infantaria puder poupar a vida de seus homens apenas com a diplomacia, sempre prefira fazê-lo. Muitas vezes a pena é mais poderosa do que a espada.
Sem dizer mais nenhuma palavra Alex seguiu sir Conlan e foi apresentado para o senhor de cabelos brancos que lia um grosso livro com uma fluência extraordinária.
Durante as primeiras duas semanas tudo que fez foi focar-se em aprender a ler e escrever. Já aprendera um pouco com sua mãe, Rosetta, então de inicio não teve grandes dificuldades. Por outro lado aprender os códigos de conduta, de lealdade e respeito, além de aprender como se portar diante de uma dama ou de um nobre, apresentou-se um grande desafio. Ainda não estava completamente aceito na escola, por isso toda noite retornava para sua casa ao invés de dormir em aposentos no castelo como as demais crianças. Aproveitava o seu pouco tempo livre para treinar escondido, os movimentos que memorizara durante o caminho pelos campos do castelo.
Repetia tantas vezes que se tornou quase mecânico. As palavras fluíam cada vez mais e se tornava comum portar-se com elegância e cavalheirismo. Vez ou outra notava que Sir Conlan observava os seus avanços e por conta disso sempre se empenhava ao máximo. Sabia que se perdesse essa oportunidade seria impossível obter outra.
Foi em um dia ensolarado, em que havia poucas pessoas nos campos que Sir Conlan voltou a falar com ele.
– Hoje é o último dia, está lembrado?
– Sim senhor.
– Então me mostre o que aprendeu.
Utilizando tinteiro, pena e papel começou a escrever os principais fundamentos de um cavaleiro. As vezes por conta do nervosismo sua letra ficava tremida. Sir Conlan avaliou aquilo com cuidado. Ele não estava tão bem quanto esperava, mas afinal tinha se passado apenas um mês, nenhuma criança aprenderia a escrever bem em um mês.
– Agora tente ler isso – Disse entregando-lhe um livro de capa verde.
Alex abriu na primeira pagina e começou a decifrar aquelas enigmáticas palavras lendo em voz alta. Ficou com medo de levantar a cabeça do livro para ver a expressão de Sir Conlan, e se tivesse feito isso veria que ele não estava muito animado. Novamente não o havia surpreendido. Por um momento, depois de ver Alex por dias esperando no portão do castelo, achava que tinha algo de sensacional nele. Poderia ser um prodígio ou algo do gênero, mas não passava de uma criança comum e ainda por cima com menos preparo que as demais.
O garoto não sabia se devia perguntar como havia se saído quando terminou de ler. Fechou o livro e o devolveu. Era claro a insatisfação de Sir Conlan, mesmo com ele tentando ocultar suas expressões e sentimentos. Havia perdido a sua única chance de mudar de vida. Agora tudo que restava era retornar para o campo e trabalhar com o pai.
– Isso é tudo? – Falou Sir Conlan com ar decepcionado.
Alex tentou pensar em algo o mais rápido possível. O que poderia fazer para mudar a sua situação? Então ele avistou um dos alvos de palha e recostado nele uma espada de madeira.
– Eu também treinei alguns movimentos – Disse ele não sabendo se aquilo o colocaria em mais problemas.
– Movimentos? Que tipo de movimentos?
– Movimentos com espada, como aqueles que os alunos mais velhos praticam nos bonecos – Disse Alex apontando.
– Quem te deu permissão de abandonar a aula e ir treinar?
– Eu não abandonei as aulas – Disse rapidamente tentando desfazer o mal-entendido – Eu treinava quando retornava para casa durante a noite, fazendo os movimentos que eu lembrava.
– Então vamos, me mostre.
Caminharam poucos passos e Alex empunhou a espada. Era bem diferente dos galhos que normalmente utilizava para treinar. Era mais fácil de segurar já que havia sido desenvolvida para isso. O contrapeso da lâmina também fazia com que os movimentos adquirissem uma maior precisão. Por outro lado era bem mais pesada, como uma espada real.
Tentou reproduzir os ataques que treinara por tantas noites da melhor forma possível. Repetiu todas as sequências que conseguia lembrar alternando entre elas até demonstrar tudo que conseguira aprender. Quando terminou o seu braço estava dolorido e gotas de suor escorriam por sua testa.
– Eu fiz bem em te escolher – Elogiou Sir Conlan com um sorriso nos lábios – Você tem talento.
– Isso significa que eu fui bem? Eu fui aceito?
– Não. Seus movimentos não têm velocidade nem força suficiente.
Alex ficou cabisbaixo.
– Por outro lado você tem um bom ritmo, uma boa respiração e aprende rápido. Com mais alguns anos de treino irá conseguir melhorar os seus pontos fracos.
– Isso quer dizer que...
– Sim, isso mesmo. Arrume suas coisas e volte em até três dias. Você foi aceito.
Todo o cansaço pareceu esvaecer de seu corpo e correndo ele voltou para casa.
– Você viu aquilo? – Perguntou Sir Conlan para um homem mais velho que já tinha alguns cabelos brancos se destacando nas têmporas.
– Sim, quem é ele? Há quanto tempo está aqui?
– É meu novo pupilo e está aqui há um mês.
– Um mês? – Perguntou o segundo homem abismado – A maioria das crianças leva pelo menos um ano para conseguir chegar ao nível que ele chegou.
– Acho que você vai ter um aluno surpreendente daqui para frente Sir Kalevi. Um aluno digno de um herói – Disse sir Conlan enquanto voltava andando para dentro do castelo.
Apesar de seus pais o parabenizarem pelo sucesso, ainda não aceitavam a decisão de Alex. Mesmo assim em dois dias ele retornou para o castelo. Sir Conlan explicou que ele iria começar com o melhor instrutor da turma dos novatos e isso seria no inicio do outono. Enquanto isso Alex utilizou o tempo livre para se dedicar completamente a leitura e escrita.
Quando as folhas amarelaram e caiaram, ele já sabia ler e escrever bem para sua idade e decorara todos os itens do código dos cavaleiros. Finalmente poderia iniciar o treino pelo qual tanto ansiara. Acordou cedo, se arrumou e imediatamente se dirigiu para os verdes campos de treinamento.
Um homem solitário estava esperando. Tinha cabelos castanhos, com alguns fios brancos começando a aparecer. Sua barba estava bem feita e seus olhos castanhos demonstravam força, assim como os de Sir Conlan. Durante o tempo em que esteve no castelo jamais havia o notado.
– Bom dia – Cumprimentou-o sem jeito com uma reverencia.
– Bom dia – Respondeu o senhor com um sorriso – Está aqui para aprender a arte da espada?
– Sim! – Falou Alex empolgado esquecendo os seus modos.
– Ainda está um pouco cedo – Disse o senhor depois de observar o sol no céu – E como você é o primeiro a chegar, teremos que esperar os outros alunos aparecerem, muitos deles estão vindo hoje para o castelo. Enquanto isso podemos conversar, qual o seu nome garoto?
– Alex Hollis – Disse percebendo a gafe ao não se apresentar.
– Eu sou sir Kalevi, e serei o instrutor de vocês.
– É um prazer conhecê-lo sir Kalevi – Disse com outro cumprimento – Espero que possa me ensinar muito.
– Acabei de ter uma ideia muito mais interessante. Que tal se fizéssemos um pequeno duelo?
– Duelo? – Perguntou Alex inseguro. Não sabia se era falta de respeito recusar, pois sentia que não teria grandes chances de vencer.
– Não é nada sério, apenas irei avaliar a sua aptidão com uma espada. Muitos cavaleiros preferem utilizar uma maça pesada ou quando montados uma lança. Segure – Disse Sir Kalevi arremessando uma espada de madeira.
Alex tentou empunhá-la da melhor maneira possível, como recordava ver os outros alunos fazendo.
– Está errado. Você está segurando muito alto e com muita força. Isso deixa a sua guarda aberta caso alguém o ataque no estômago.
– Mas eu não estarei usando armadura?
– E se você não estiver? Caso seja pego em uma emboscada, pode não estar preparado devidamente para a batalha. De qualquer forma irá ter vezes, que em busca de maior locomobilidade irá seguir desprotegido. Nestes momentos será importante empunhar corretamente a espada.
Alex balançou a cabeça concordando.
– Agora você só precisa segurar com um pouco menos de força, os seus movimentos tem que fluir, não podem ser tensos como você está.
– Assim? – Perguntou o garoto depois de tentar arrumar sua posição.
– Não. Você tem que segurar a arma com firmeza, se não qualquer golpe irá arrancá-la de sua mão. É, assim já está melhor, com o tempo você aprende – Disse sorrindo – Agora vamos começar nosso pequeno duelo.
Utilizando outra espada de madeira Sir Kalevi se posicionou da mesma maneira que instruíra. Conseguia segurar a tosca arma com maestria, como se fosse natural para ele empunhar uma espada.
– Pode começar quando quiser – Disse o senhor.
Alex pensou se deveria tentar algum dos movimentos que treinara. Era a única coisa que sabia fazer, entretanto apesar de conseguir golpear um boneco de palha era completamente diferente com uma pessoa real.
Tentou atacar e seu golpe foi aparado no meio do caminho.
– Precisa de mais força, precisão e equilíbrio. Agora é a minha vez.
Sir Kalevi tomou distancia com um passo, segurou a espada na altura dos ombros e tentou fazer uma investida. Com um pouco de técnica e muita sorte Alex levantou sua arma e conseguiu deter o golpe.
– Parabéns – Elogiou o instrutor.
O garoto não acreditava no que acabara de fazer. Talvez houvesse alguma chance de lutar de igual para igual. Sir Kalevi girou sua espada e a atingiu na mão do garoto fazendo com que ele largasse a arma, e posicionou a lamina próximo do pescoço de Alex.
– Você foi bem para uma primeira luta. Mas cometeu um erro com seu excesso de confiança. Apenas lembre-se sempre que um erro na vida real pode custar a sua vida – Disse desembainhando a sua espada e mostrando o frio brilho da afiadíssima lamina de metal.
Ao longe um grupo de meninos se aproximava sendo guiados por Sir Conlan. Ao avistarem Sir Kalevi todos correram eufóricos.
– Sir Kalevi, é o senhor mesmo? – Perguntou um garoto de cabelos ruivos. Ele como a maioria dos garotos deveria ter em torno de seis ou sete anos.
Ele apenas concordou com um sorriso.
Algumas crianças do grupo pareciam confusas por não o reconhecerem. Então as outras fizeram questões de explicar:
– Este é Sir Kalevi, o herói do feudo de Caerwyntc, o cavaleiro da lamina afiada. Dizem que com um único movimento de espada ele consegue derrubar dez homens completamente armados.
– Isso é exagero. Talvez consiga derrubar três ou quatro – Comentou Sir Kalevi em tom de brincadeira – Se vocês se dedicarem bastante um dia conseguiram ser mais incríveis que eu.
Alex estava perplexo. De alguma forma, agora que sabia os seus reais talentos, sir Kalevi parecia transmitir uma aura de força e poder. Não conseguia acreditar que em seu primeiro dia de treino duelara com ele. Observou mais uma vez a afiadíssima espada que ele carregava consigo, com um olhar de admiração e respeito.
Anos depois foi aquela mesma espada que tocou o seu ombro e o consagrou um dos cavaleiros mais jovens do feudo. Dos quatorze aos dezoito anos trabalhou apenas como um guarda no interior do castelo. Ele achava divertido assistir os treinos pelo qual passara, desde a dificuldade a suportar o peso da armadura até os cuidados que deveria ter com um cavalo.
Sempre que se encontrava com Sir Conlan ou Sir Kalevi nos corredores, agradecia por tudo que eles tinham oferecido, até mesmo as broncas. Era apenas por conta deles que conseguira chegar tão longe.
Aos dezenove se mudou para o feudo vizinho, para trabalhar como guarda do Conde de Gavriewallis. Era a primeira vez que ficava longe dos pais, já que mesmo quando vivia no castelo podia escapar e visitá-los no final da tarde. Agora mesmo se tentasse, levaria quase um dia inteiro de cavalgada.
Eles eram um dos poucos nobres do feudo de Nyneve, então mesmo o seu palacete se destacava comparado com as demais residências. Com a única diferença de não se encontrar rostos conhecidos nas ruas, a estrutura geral daquele lugar era bem parecida. As mesmas estradas de pedra ou de terra batida. As construções de palha, próximos aos campos dos fazendeiros. A larga rua principal onde ficava a maioria dos mercadores que vendiam produtos diversos. Diferente de Caerwyntc o castelo ficava no centro de um límpido lago, só sendo possível acesso a ele através da ponte levadiça.
Além de Alex, existia pelo menos mais uma dúzia de cavaleiros e soldados que trabalhavam para a família. Eles se revezavam em turnos e por conta disso não era sempre que ele conseguia se encontrar com todos. Sir Eloi era o mais velho e responsável por todos os outros guardas, principalmente pelos novatos. Foi ele quem o acompanhou quando ingressou no novo trabalho e lhe instruiu sobre todos os seus deveres.
O Conde de Gavriewallis era alguém da nobreza com muita influencia na esfera politica. Apesar de oficialmente sua casa ser naquele feudo, ele passava mais tempo em viagens reforçando os laços de amizade existente entre ele e outros nobres. Por conta disso a maior parte do trabalho se resumia em protegê-lo principalmente durante as viagens que fazia, já que ao ficar hospedado em outros castelos sempre existia uma guarda real. Por outro lado a Condessa fazia poucas viagens, preferindo quando possível não acompanhar o marido. Era por isso que existiam duas equipes, uma delas responsável por tomar conta do Conde e a outra da Condessa.
Alex seria substituto de um soldado que deixara o grupo da Condessa, e por isso seria um dos oito responsáveis por ela.
O trabalho era monótono, como já era de se esperar. Enquanto estivesse dentro do palácio tudo que deveria fazer era patrulhar ou tomar conta da entrada. Quatro meses depois ele já se habituara ao trabalho e iniciaria a sua primeira viagem fora do feudo. A Condessa iria visitar Acheflow, um dos maiores feudos. Seria uma viagem longa.
– Ouvi dizer que tem ladrões que atacam os viajantes – Disse Richard um garoto de cabelos loiros que cavalgava logo atrás de Alex.
– Está com medo? – Brincou Lucas.
– É claro que não – Revidou Richard emburrado.
– Garotos, parem de conversa. Vocês realmente acham que vai ter alguém que vai tentar nos atacar? – Perguntou Sir Eloi – Somos oito cavaleiros completamente armados acompanhando a carruagem da Condessa. Possuímos os cavalos mais velozes de todos os feudos, no pior dos casos poderemos despistar qualquer inimigo.
– E quanto aos charlatões? – Perguntou Lucas.
– O que têm eles? – Disse Alex confuso.
– Então você não conhece a reputação dela? – Sussurrou Lucas – Dizem que a Condessa é enganada facilmente e adora todas essas histórias de misticismo.
– Não fique espalhando boatos. Lembre-se que ela é quem dá as ordens por aqui. Não se preocupe, eu não deixarei que nada ocorra nesta viagem – Falou confiante Sir Eloi – Já estamos viajando a uma semana e chegaremos a Acheflow no máximo até amanhã. Até agora não ouve nenhum incidente e espero que continue assim.
– Sir Eloi, eu não queria dizer nada, mas olhe – Comentou Richard apontando para a frente.
Preso a uma árvore tinha uma placa em que era possível ler entalhado: “Preveja seu futuro com Rishi, o magnífico!”.
– Esse tipo de charlatão é o pior – Disse Sir Eloi balançando a cabeça – Torçam para que a Condessa não leia a placa...
Senhor, acho que é tarde – Avisou Lucas.
A frente o condutor da carruagem parava os quatro cavalos e a porta era aberta. O cabelo loiro-claro da condessa se destacava contra a vegetação verde escura e ela tentava caminhar sem sujar o vestido. Ela olhou para frente e para trás antes de dizer:
– O que vocês estão esperando? Venham me ajudar.
Com um movimento de cabeça de Sir Eloi dois cavaleiros que estavam à frente da carruagem desceram de suas montarias e foram ajudá-la a caminhar pela estrada de terra até a simples barraca em que havia um senhor encapuzado.
Fiquem de olhos abertos, aposto que ele vai tentar roubar alguma joia – Instruiu Sir Eloi deixando uma das mãos próxima a sua arma.
Joias era o que não faltava. Tinha anéis em ambas as mãos e um colar de diamante. Não entendiam para que era necessário se arrumar tanto para uma simples viagem, seria mais seguro se deixasse tudo guardado no interior da carruagem e só as utilizasse quando estivesse no interior do castelo.
Dois guardas estavam ao lado dela. Os outros dois vigiavam a carruagem para não ser assaltada em uma emboscada. Por fim, os outros quatro observavam montados qualquer aproximação súbita, ou movimento estranho daquele homem encapuzado.
A condessa sentou em uma cadeira na frente da pequena mesa cheia de itens estranhos, iluminado a luz de velas. Sentado do outro lado estava aquele que dizia ser o magnífico Rishi.
– Desculpe, mas qual o seu nome bela senhora? – Disse ele com uma reverência.
A condessa soltou uma risadinha com o gracejo.
– Sou a Condessa Laurenne de Gavriewallis.
– Encantado em poder me encontrar com tão bela dama. Eu sou o magnífico Rishi! – Disse arrancando o capuz e revelando uma aparência bem mais jovem do que era esperado. Seus cabelos castanho-escuros eram ondulados e estavam penteados para trás e seus olhos não pareciam os olhos de um sábio, eram olhos castanhos comuns com uma aparência um pouco melancólica, se destacando na pele pálida – Aceita chá preto?
– Sim, por favor.
Na bancada cheia de itens estranhos ele depositou duas xícaras brancas de porcelana e um bule fumegante. Todos os guardas olharam receosos com medo de que ele tivesse colocado algum tipo de veneno e percebendo a tensão no ambiente Rishi disse:
– Por um acaso algum dos senhores também deseja chá? Se quiser eu tenho mais uma xícara.
– Eu aceito – Disse Alex desmontando do cavalo.
Ele depositou as folhas processadas de chá e encheu a xícara de água fervente. Rishi foi o primeiro a tomar, em seguida Alex e só depois de passar alguns minutos que a Condessa provou o liquido fumegante.
– Agora vamos ao que interessa – Disse Rishi apresentando um baralho – Escolha uma carta, qualquer uma.
A Condessa puxou uma carta.
– Eu sinto que a carta escolhida foi o arcano maior, a Imperatriz – Adivinhou Rishi colocando a mão na testa e se concentrando profundamente.
– Sim, é essa mesma – Disse a Condessa empolgada.
– Significa prosperidade e realização. É uma carta que representa a sabedoria e a riqueza.
– Que ótimas noticias.
– Espere um pouco – Disse Alex puxando outra carta aleatória do baralho. Também era a Imperatriz, assim como as próximas duas que sorrateiramente pegou do baralho depositado na mesa.
– Algum problema? – Perguntou Rishi.
– Não – Disse Alex devolvendo as cartas e completando em tom de zombaria – Rishi, o magnífico.
– Acredito que a consulta termina aqui. Obrigado pela paciência e sucesso em seu futuro.
A Condessa deixou uma moeda de prata em cima da mesa, agradeceu e retornou para a sua carruagem.
– Você é um trapaceiro – Disse Alex – No baralho todas as cartas eram “a Imperatriz”.
– E o que tem demais nisso? Não é isso que todas as pessoas querem? Sabedoria e riqueza? – Revidou ríspido – Eu apenas estou ganhando meu dinheiro honestamente.
– Honestamente? Você não sabe o que é um trabalho honesto. Vocês são todos iguais, ficam fazendo truques e enganando viajantes. Dizendo que possuem habilidades incríveis enquanto na verdade só fazem tramoias.
– Eu posso prever o futuro – Disse Rishi sério – Mas não recomendo que as pessoas o saibam.
– Qual será o truque desta vez? – Perguntou Alex rindo.
– Não tem truque – Comentou Rishi pegando a xícara que a Condessa utilizou com as duas mãos – É teimancia.
Ele olhou fixamente para a borra deixada no fundo, instantes que pareceram durar uma eternidade, antes de declarar em tom sombrio.
– A Condessa irá morrer daqui três dias. Eu aconselho a não estar próximo dela.
– Isso por acaso é uma ameaça? – Perguntou Alex de forma intimidadora.
– Não, pelo contrário, é um conselho. E por isso é bom segui-lo.
– Vamos Alex – Disse Sir Eloi – Está atrasando a viagem. Não se deve ficar acreditando em tudo que eles dizem.
Alex voltou a montar em seu cavalo.
– Alguma joia foi roubada?
– Acredito que não. Pelo menos eu não notei nada.
– Senhor – Disse Joel se aproximando, um dos guardas que ajudara a Condessa a descer da carruagem e andar pela estrada sem sujar o seu vestido.
– O que houve?
Ele parecia visivelmente constrangido.
– O meu cavalo foi roubado.
Quando olharam para dentro da tenda, ela estava vazia e Rishi o magnífico desaparecera com o seu melhor truque.
O restante da viagem transcorreu de forma tranquila. Na manhã do dia seguinte passaram pelos portões de entrada do feudo de Acheflow e se dirigiram para o grandioso castelo. Era uma cidade muito mais movimentada e bem maior. O castelo era magnífico. Grande e protegido. Entretanto ele sentia falta dos verdes campos de treinamento de Caerwyntc e da calma do leste.
Havia inúmeros nobres hospedados no castelo e por conta disso uma quantidade excessiva de guardas. Alex preferia assim. Não teve coragem de contar para seus companheiros sobre o conselho de Rishi, com medo de zombarem dele. Contou apenas para o capitão Eloi, que disse para que ele não se preocupasse. Ninguém conseguiria adentrar aquele castelo. Mesmo assim algo parecia errado. Talvez fosse somente coisa da sua cabeça, mas Alex sentia que realmente algo de ruim iria acontecer.
No terceiro dia, que tecnicamente era para a Condessa morrer, o jovem cavaleiro decidiu se encarregar pessoalmente de sua guarda. Fosse provando tudo que ela comesse para ter certeza de que não estava envenenado, ou então acompanhando-a para todos os lugares. De inicio ela achou aquela atitude estranha, mas resolveu não contrariar o guarda, que na sua opinião era um dos mais bonitos de sua equipe.
– O que está fazendo? – Perguntou Lucas de passagem depois de avistar Alex parado em frente a porta de um quarto.
– Montando guarda para a Condessa.
– Sir Eloi está nos convocando no saguão principal. É bom ir até lá.
– Mas...
– Você realmente acha que alguém conseguira entrar no castelo? Com todos esses guardas patrulhando? Não se preocupe, será apenas alguns minutos.
Contra sua vontade Alex concordou em segui-lo. Durante todo o trajeto sentia que algo estava errado. Ainda estava na metade do dia e olhando pela janela dava para ver pesadas nuvens se formando no céu.
Quando chegou no salão e percebeu que não havia ninguém seus temores se concretizaram.
– Que estranho. Eu tenho certeza que Richard disse para nos dirigirmos para cá.
– É uma distração – Falou Alex para si mesmo antes de voltar correndo para o quarto da Condessa.
Pelos corredores existiam alguns guardas patrulhando, mas nenhum rosto familiar a quem pudesse recorrer. A porta do quarto parecia intacta, era um bom sinal. Talvez tivesse retornado a tempo ou no fim não fosse nenhuma cilada.
Alex bateu na porta. Estava destrancada.
– Com licença Condessa, apenas quero saber se a senhora está bem e se não precisa de nada.
Não houve resposta.
– Condessa? Está dormindo? Desculpe invadir a privacidade de seu quarto, mas estou entrando.
Abriu a porta devagar. A cortina na janela deixava entrar apenas parcialmente a luz, conferindo uma aparência sombria ao aposento. Deitado na cama estava um corpo imóvel e ao se aproximar confirmou ser a Condessa. Se não prestasse atenção diria que ela estava apenas dormindo, mas os finos lençóis brancos manchados de vermelho acabaram com qualquer dúvida. Chegara tarde demais. Observou a cena sem tocar em nada. Com certeza ela fora assassinada. Mas por quem? Como? E por quê?
Olhou pela janela. Era muito alto para conseguir descer sem o auxilio de uma corda e mesmo se tivesse uma, seria facilmente avistado a plena luz do dia. Como alguém conseguiu entrar no castelo? Foi então que ouviu leves batidas na porta.
– Condessa, viemos trazer o seu jantar como a senhora solicitou. Estamos entrando – Soou a voz de uma das empregadas.
No mesmo instante em que ela abriu a porta e viu a condessa caída na cama com manchas de sangue e um homem no seu quarto deduziu a sua morte e gritou por ajuda. Mais duas empregadas que estavam logo atrás dela começaram a gritar também.
Alex tinha que pensar rápido. Se não fizesse nada seria acusado de ser o autor daquele assassinato antes que pudesse pensar em dar qualquer explicação. Rapidamente algum outro guarda viria e tentaria imobilizá-lo. Saltar pela janela seria loucura, teria de ir por dentro do castelo e torcer para que ninguém o detivesse pelo caminho.
Se você é algum nobre que passeia pelo castelo de Acheflow deve achar um lugar adorável. Os longos corredores e as escadarias mais longas ainda. As grandes janelas que permitiam a entrada de abundante quantidade de luz, além de prover uma bela vista. A segurança dos altos muros, praticamente intransponíveis tanto para aqueles que tentam entrar quanto para aqueles que tentam sair. E o melhor de tudo: dezenas, ou até centenas de guardas patrulhando todo lugar.
No entanto se você for Alex tudo que verá são corredores intermináveis e escadas altíssimas. Janelas grandes de onde qualquer um poderia observá-lo com facilidade. E se não bastasse os altos muros, ainda existiam dezenas de guardas prontos para acertá-lo com uma flecha, uma espada ou uma lança.
Na fuga tudo que conseguia pensar era a quem poderia pedir ajuda. Estava em um feudo estranho, distante a mais de uma semana a cavalo de sua casa. A pessoa para quem trabalhava estava agora morta, e os demais cavaleiros que trabalhavam com ele poderiam ser traidores. Algum deles havia o tirado da frente da porta para que pudesse dar continuidade ao plano sórdido. Ou até mesmo os três decidiram se juntar, matar a Condessa e colocar a culpa nele.
Ouviu o eco de passos no corredor virou na direção contrária e diminuiu o ritmo. Eram dois guardas que nunca havia visto.
– O que houve? – Perguntou Alex preocupado.
– Soaram o alarme – Explicou o da direita – Dizem que houve um assassinato, mataram uma condessa de Nyneve.
– Já conseguiram prender o culpado?
– Acredito que não – Respondeu o outro – Mas isso se resolvera rapidamente. Não podemos deixar que alguém seja morto sobre a nossa guarda. Além de ter tirado uma vida, ele está manchando a reputação de nosso castelo.
– Alguém tem ideia de como é o suspeito?
– Apenas boatos. Dizem que era um dos próprios guardas dela, do feudo de Nyneve.
– Eu não deixarei que isso fique assim – Disse Alex parecendo estar furioso – Irei me reunir com meus colegas no saguão e caçarei esse homem até o final por manchar a reputação daquele feudo.
Sem mais delongas, Alex voltou a correr em direção a saída enquanto os dois guardas se distanciavam cada vez mais. Conseguiu enganar mais cinco ou seis guardas até chegar no saguão. Sabia que aquilo não funcionaria para sempre, então não tinha tempo a perder. Primeiramente pensou em passar no seu quarto em busca de suprimentos que pudesse utilizar na fuga até que conseguisse provar a sua inocência. Mas isso seria muito arriscado. Assim que descobrissem sua identidade seria o primeiro lugar que montariam guarda. Caso pegasse um cavalo emprestado no estabulo acabaria chamando muita atenção.
Continuou se passando por mais um dos guardas e por pouco não conseguiu sair de dentro do castelo. Pelo menos vinte homens armados guardavam o portão.
– O rei disse que devemos iniciar as buscas na floresta antes que comece a chover. Ele pode já ter fugido.
– Quem é você? – Perguntou um dos guardas apontando a lança para seu pescoço.
Alex parou instantes para pensar e tudo que conseguiu responder foi:
– Sir Conlan Sheridan. Eu apenas estou repassando ordens. Se você quiser se entender depois com o Rei de Acheflow, talvez ele decida escolher um de vocês para levar para forca enquanto o verdadeiro assassino foge.
Por instantes a lâmina continuou apontada para o seu pescoço e então ele abaixou a arma e gritou:
– Abram os portões. Vamos começar a busca nas florestas e na cidade!
Os pesados portões de madeira maciça foram destravados e abertos. Quando descobrissem que o rei não havia ordenado nada e que Sir Conlan nunca esteve no castelo já seria tarde demais.
Uma pesada chuva iniciou diminuindo consideravelmente a claridade do dia. Ninguém na cidade iria fornecer abrigo a um completo desconhecido e apesar de os guardas estarem procurando nas florestas dos arredores, seria sua melhor opção para escapar do feudo.
Acompanhou um grupo de guardas até a fronteira. Para trás ia ficando um caos cada vez maior dentro do castelo e toda a sua vida de trabalhador honesto. Assim que os grupos se dividiram para ter uma maior eficiência na busca, ele aproveitou o momento de distração para se separar dos outros guardas. Mensageiros a qualquer momento poderiam chegar com as verdadeiras ordens do rei ou uma descrição sua.
Lembrou-se do conselho de três dias atrás. Que a Condessa morreria e seria melhor se ele não estivesse perto. Rishi o magnífico não mentiu nem sobre seus poderes e nem sobre o conselho. Se naquele lugar houvesse uma única pessoa que acreditaria nele e não o entregaria ao rei, com certeza seria ele. Não conseguia entender como se envolvera naquela confusão e entendia menos ainda o que estava prestes a fazer, mas era o momento de pedir ajuda a aquele trapaceiro.